ladeira

ladeira da memória

a rua larga e de terra era em declive. todo dia a gente descia aquela ladeira. todo dia a gente a subia. mesmo assim só me recordo daquele lugar por causa dessa única lembrança.

ouvimos os disparos quando voltávamos da escola. meu pai meu irmão eu. de cara abaixei. o pai disse, segue moleque, isso foi longe daqui. retomamos o caminho. na rua as pessoas já falavam, que tiro foi esse; deus pai cuide dessa alma; deve ter sido bandido; vamos lá ver. eu as ouvia. e elas aos poucos seguiam nos cochichos o nosso mesmo caminho. a gente só seguia o caminho de casa. alguma hora olhei o rosto do pai, vi então uma sombra. com medo olhei o irmão, permanecia quieto.

– olha! – antonio disse, enquanto apontava com a mão o corpo estendido na calçada.

estávamos na ladeira de casa. segui o rumo tentando fingir nenhum interesse e o irmão depois do interesse inicial seguiu também. agora o pai, o pai parou. o pai fincou os pés no começo da ladeira e fixou o olhar no corpo estendido. só fui perceber isso quando já estava lá embaixo, antonio, olha lá o pai. e então ele nos viu. começou a caminhar até o corpo sem tirar em nenhum instante os olhos de nós. chegou ao lado. agachou. fez o sinal da cruz e voltou o olhar a nós. então, fez com a mão sinal para que fôssemos até lá. subimos devagar. ele então olhou o corpo. olhamos também. em seguida, olhou cada um de nós. os olhos dele piscavam vermelho. e no fechar e abrir daqueles olhos um pouco da sombra do pai entrava em mim. não permaneci. virei o rosto. desci. nunca conversamos. o pai havia ensinado a mim e a antonio sobre a morte e disso não dá para se conversar.