sorte

epitáfio ou a sorte da lápide

bordava em cada uma de suas roupas um símbolo diferente. às vezes cruz em outras estrelas ondas linhas sóis luas círculos, tudo que lhe viesse a mente. gostava de estampar essas miudezas. ninguém via os enfeites.

– alguém vai reparar. – vivia dessa forma numa espera por esse alguém reparador.

quando completou cinquenta e sete anos se cansou de bordar.

– ninguém nunca percebeu.
– nem um única alma reparou a lâmpada na barra da minha calça nem no cão na gola da camisa nem em nada, até mesmo quando bordei no peito da minha blusa aquele trevo gigantesco ninguém falou coisa alguma.
– ninguém.

morreu um ano depois, algo a ver com estresse e coração fraco. no velório apenas a irmã  o irmão suas famílias. cerimônia rápida. sem religião. poucas lágrimas. corpo enterrado.

hoje aquele é o túmulo mais comentado do cemitério, é que os sobrinhos por sentirem falta daquelas roupas divertidas – geradoras de tantas conversas às escondidas – fizeram uma capa. o túmulo agora é atração. todos reparam na grande lápide com um trevo bordado.