silvia sara

da saliva de silvia
escorre a cura

a saliva de silvia sara
a saliva sara surra
a saliva livra sarna

e assim, silvia
com sua boca em beijo
estanca a dor.

ela:
a vinda da selva,
a feita de seda;
a não-sei-um-quê-não-humano.

ela:
a escavadora das rochas,
a ceifadora dos frutos,
a colhedora da vida.

sim! silvia:
um milagre.

e milagre maior
é quando nos cura
– a nós todos! -,
com a sua língua.

silvia afetuosa
vive só.
e come suas estrelas
e banha-se no fogo
e corre em busca
– em busca do quê?

sem saber
silvia chora

então,
sua boca seca
e sua seiva acaba
e o milagre sofre
– como sofre! -,
pois sua lágrima
– queria eu não fosse –
é enxofre.

ela – a curadora – sente as dores
se contorce, e grita, e maldiz

está corroída,
é quase morta.

e seu pranto aumenta
e seu sal escorre
e seu grito ecoa
e torce as mãos, e bate os punhos, e sibila!

em espasmos silvia se socorre
de seu ventre brota a seiva
– sempre novamente –
e por dentro silvia sara

na linha

é! um número – tentava completar seu raciocínio – eu me sinto completamente obcecado por esse número, e ainda mais estranho é não saber por qual. você sabe, toda hora na minha cabeça surgem ideias assim. e agora eu tô começando a ver todos esses números quatros seis setes, todos juntos em filas formando aquele número único e daí quando acredito que vou saber qual é, a fila se desmancha… é, parece mesmo que ando sonhando acordado, você sempre fala isso…. sim, mais uma estranha obsessão. eu sei… tá bom, tá bom, eu sei. mas você gosta, é o que mais gosta em mim, não é? minhas loucas obsessões malucas! eu só queria conseguir anotar… o que eu faria? sei lá. um desenho talvez, e talvez escrevesse um texto. mas… mas… você já sentiu um número? eu falo isso, porque por mais estranho que possa parecer eu sei que esse número é amarelado e tem cheiro azedo. e mesmo sem saber qual número é, eu o sinto todo hora. eu posso tocar um número… haha, você acha mesmo? não. não pode ser um outro sentido. é só maluquice mesmo – começa a coçar o nariz incessantemente, faz com isso um barulho horrível -, estou gripado… é, melhor eu ir. obrigado por ouvir… sim, sim!, se eu descobrir o número te ligo de novo. beijo.

kimera

Kimera, de Paulo de Medeiros

ela desfila galopa trota e golpeia
ela imperiosa criminaliza, faz teia

como um bicho, bixa!
como um lixo, lixa!

metade de seu resto crespo
pedaço de seu corpo teso
fareja o alimento
decepa a vontade

viúva negra
pomba branca
rosa, cristalina
quartzo em todas as cores

kimera! a víbora a se engolir

imagem: Paulo de Medeiros, mais em http://www.facebook.com/pages/Paulo-de-Medeiros/358194294320328

epitáfio ou a sorte da lápide

bordava em cada uma de suas roupas um símbolo diferente. às vezes cruz em outras estrelas ondas linhas sóis luas círculos, tudo que lhe viesse a mente. gostava de estampar essas miudezas. ninguém via os enfeites.

– alguém vai reparar. – vivia dessa forma numa espera por esse alguém reparador.

quando completou cinquenta e sete anos se cansou de bordar.

– ninguém nunca percebeu.
– nem um única alma reparou a lâmpada na barra da minha calça nem no cão na gola da camisa nem em nada, até mesmo quando bordei no peito da minha blusa aquele trevo gigantesco ninguém falou coisa alguma.
– ninguém.

morreu um ano depois, algo a ver com estresse e coração fraco. no velório apenas a irmã  o irmão suas famílias. cerimônia rápida. sem religião. poucas lágrimas. corpo enterrado.

hoje aquele é o túmulo mais comentado do cemitério, é que os sobrinhos por sentirem falta daquelas roupas divertidas – geradoras de tantas conversas às escondidas – fizeram uma capa. o túmulo agora é atração. todos reparam na grande lápide com um trevo bordado.

pós-pé

eu falava, vem! vem pro pai.

e ela olhava sorriso. ela era olhar sorriso. e tentava colocar pé-pós-pé, criar balanço e caminhar. aquele andar duro de bebê.

faz tempo isso. e ela já balançou muito. passo apressado de atraso. passo apertado de dor. passo passista no samba. ela desvendou seus passos e passou. sinal vermelho. barulho forte. metal no corpo. ambulância.

amputada. agora sem pé-pós-pé eu ainda falo, vem! vem pro pai. ela olha choro.  e gira as suas rodas em novo balanço. me olha novamente. é olhar sorriso. um novo passo.

enfermidade linguística

a cor agia em perseguição, como se fosse um monstro a crescer e crescer. ametista, ele dizia a tudo a sua volta. em pouco a bola já se chamava ametista. e o retrato na sala. e a luz na varanda. e a sua roupa calça camisa sapato. tudo se tornava ametista. e não como apelido nome frontispício. e sim como coisa objeto. a essência de tudo mudava pra ele. era ametista.

foi ao médico. doutor, estou esquecendo o nome das coisas. como assim? quando as olho não me vem seu nome, e apenas as chamo: ametista. intrigado com a declaração, o doutor tenta investigar a causa. quando isso começou? não me recordo direito, mas já está a mais de duas semanas. cada vez mais, doutor, mais e mais. dos objetos da minha casa quase não recordo. e hoje se me olho, só digo que visto ametista. nos pés ametista, nas pernas e no corpo ametista. rapaz, os sintomas são claros. você está com um quadro intermediário de bloqueio linguístico. e devo lhe avisar: é grave!

voltou pra casa com a papelada de exames e medicamentos. além de duas recomendações: a primeira, devia anotar tudo; a segunda, devia escrever em todos os objetos os seus nomes. foi a cadeira: ametista. foi ao guarda-roupa: ametista. foi assim, de coisa a coisa escrevendo os seus nomes. quando terminou abriu um caderno e disse: hoje ametista em todas as minhas ametista. pulou uma linha. sinto-me ametista. devo ir novamente ao ametista. parou de escrever. sentia a gravidade do caso e por isso ametista.

cnida oculta

no escuro
nada a água-viva
guarda-chuva
pulsa pulsa pulsa

no escuro
brilha a água-viva
saco plástico
luz

mar imóvel
cnidas gelantes

agulha entra no peixe
agulha envenena
agulha engole
agulhada

ouve as gotas?
barulho das águas vazando

mar se mexe
– água-viva foge! –
ondas ardentes

oxigênio entra na água
oxigênio envenena
oxigênio engole
agulhada

agora
água-morta
dispersa

e o mar draga
imóvel
vulcão

paredes do universo

dormia de porta aberta. sentiu um sufoco preencher. levantou então e foi até a sala abrir a casa. o ar entrou frio. respirou. imóvel. percebeu o som das ruas. quis ir até o portão. foi. colocou as mãos nas grades. uma prisão? sentiu o gelado de seus dedos arderem. solto-se. pequenos insetos voavam perto de seu rosto. tentou espantar. não conseguiu. quis ir à rua. pegou a chave, abriu o portão… não saiu. se virou e voltou à cama. sorriu. podia agora existir junto ao universo. o sufoco passara.

ladeira da memória

a rua larga e de terra era em declive. todo dia a gente descia aquela ladeira. todo dia a gente a subia. mesmo assim só me recordo daquele lugar por causa dessa única lembrança.

ouvimos os disparos quando voltávamos da escola. meu pai meu irmão eu. de cara abaixei. o pai disse, segue moleque, isso foi longe daqui. retomamos o caminho. na rua as pessoas já falavam, que tiro foi esse; deus pai cuide dessa alma; deve ter sido bandido; vamos lá ver. eu as ouvia. e elas aos poucos seguiam nos cochichos o nosso mesmo caminho. a gente só seguia o caminho de casa. alguma hora olhei o rosto do pai, vi então uma sombra. com medo olhei o irmão, permanecia quieto.

– olha! – antonio disse, enquanto apontava com a mão o corpo estendido na calçada.

estávamos na ladeira de casa. segui o rumo tentando fingir nenhum interesse e o irmão depois do interesse inicial seguiu também. agora o pai, o pai parou. o pai fincou os pés no começo da ladeira e fixou o olhar no corpo estendido. só fui perceber isso quando já estava lá embaixo, antonio, olha lá o pai. e então ele nos viu. começou a caminhar até o corpo sem tirar em nenhum instante os olhos de nós. chegou ao lado. agachou. fez o sinal da cruz e voltou o olhar a nós. então, fez com a mão sinal para que fôssemos até lá. subimos devagar. ele então olhou o corpo. olhamos também. em seguida, olhou cada um de nós. os olhos dele piscavam vermelho. e no fechar e abrir daqueles olhos um pouco da sombra do pai entrava em mim. não permaneci. virei o rosto. desci. nunca conversamos. o pai havia ensinado a mim e a antonio sobre a morte e disso não dá para se conversar.